Perspectiva do século vinte em alta escala
Jornal A Tribuna, 15 de janeiro de 1961
Não será jamais pretensão minha pôr em uma crônica que pretende, generalizadamente, falar de literatura, estabelecer qualquer coisa que corresponda a uma perspectiva literária do século vinte, nestes primeiros dias de um novo ano, do ano de 1961, quando estamos dobrando a metade do século e já vai fazer vinte anos que desapareceu James Joyce, vinte anos que desapareceu Virginia Woolf, os dois “grandes” da língua inglesa da primeira metade do século – felizmente escapos da vulgaridade de alcançarem o Prêmio Nobel, por exemplo…
Em 1961, Joyce e Virginia Woolf, mortos há vinte anos, exatamente, em plena segunda guerra mundial do século, já estarão distantes de nós mais de uma geração, artisticamente falando, pois convencionou-se que uma geração artística ou literária substitui outra de quinze em quinze anos… Vamos admitir, para a química das gerações, que seja compreensível esta divisão arbitrária do tempo.
Estaremos, também, neste ano, a uma distância de quase quarenta anos, para o desaparecimento de Marcel Proust, que morreu há trinta e nove anos, em 1922, depois da glorificação e não dava e equívocos de apanhar nazistas desmemoriados e premia-los, como ocorreu no ano passado.
A perspectiva a que procuro me referir é a de que as obras dos “grandes” do século começam a ser estudadas, definitivamente, pois o tempo passou, e todos os elementos de uma análise e de uma interpretação foram recolhidos, através das cartas, dos testemunhos, das memórias, das incidências, e uma certa “cristalização” dos temas e dos estilos, da pesquisa e dos símbolos e mitos, foi alcançada, senão ultrapassada. É o momento em que estamos nos aproximando de certas “verdades” fundamentais, no que tange aos escritores da primeira parte do século. Os estudos amadureceram.
E como nos parece repleta de importantes obras e de nomes significativos esta imensa metade do século vinte, do qual nos separa uma década de observação mais repousada!
Para quem não preza as coisas da literatura, estas não têm a mesma importância. Mas para quem cuida de literatura sob o aspecto cultural e de vivência essencial que implica a atividade – tanto de autores como de leitores – há uma significação muito grande em emprestar-se a um Proust a característica da “memória” a um Joyce a de “tomada da consciência da coisa literária”, a uma Woolf a importância desse “universo feminino” que ela traduziu em sua obra, a um Kafka a colocação do “processo da Justiça”, a um Rilke a questão do mundo visto sob a “intransigência poética”…
Tudo isto é vivido e realizado em uma obra imensa de imaginação e de técnica lingüística, que atinge o paroxismo em cada um desses casos, sob a particularização de que se reveste, porque uns pertencem a um mundo limitado e uma língua, e outros se distanciam de seu mundo e abrangem muitas línguas, como a multivalência prosódica de Joyce chegou ao “quimismo da linguagem”.
Tudo isto vale para qualquer caso, e sem considerar “correntes”, em que uns se colocam voluntariamente enquanto outros aí são colocados pela crítica classificadora, para facilidade e compreensão, quanto para o estabelecimento de uma hierarquia. Mas, há que considerar, no caso da perspectiva, ainda, a questão das “correntes”, que subsistem, sem dúvida, ligadas a definições, as quais importaria “reconhecer” como legítimas, em casos bastante delimitados, como a poesia dos surrealistas. Sei que muitas destas coisas poderão provocar aborrecimento na linha de dimensão da província em que nos situamos, mas é preciso insistir em divulgar nomes e noções, para que não nos acusem, como tantas vezes injustamente o fazem os nossos “pilares de ignorância” de termos procurado um monopólio cultural e artístico.
Já existe, hoje, uma vasta literatura “traduzida”, dos mestres do século vinte, e em línguas mais acessíveis, como o espanhol, o italiano e o francês, há uma vasta obra crítica, abrangendo a literatura dos mestres. É para chamar a atenção sobre tais nomes que estamos escrevendo à margem do que seria a lembrança de uma perspectiva literária do século vinte. A perspectiva que começa a surgir depois da última guerra, quando alguns dos “grandes” desapareceram, outros foram descobertos, como o caso de Robert Musil, e outros continuam na marcha sem fim.
MARA LOBO.