O Jornalismo de Pagu

O Jornalismo de Pagu

Cor Local 1

24 de novembro de 1946

Numa tarde desta demudada São Paulo de novembro, 1946, eis o “insubstituível” mas não “justificável” Flávio de Rezende Carvalho, perambulando pelo viaduto do Chá. “Olá”, como sempre. Falamos no sono desta nossa ilha desabrigada, onde a política predomina, enquanto uns velhos náufragos ficam sentados na praia. Flávio concorda, mas diz que ainda é o que existe, e que “dá muita esperança”. O autor dos “Ossos do Mundo” informa que está escrevendo e terminando um ensaio sobre geofísica. Acrescenta coisas desagradáveis sobre a nova geração. Enquanto andávamos, evoquei um trecho de Samuel Beckett, em que um sujeito absolutamente consciente de que nada mais podia produzir, estendeu-se numa estrada, “lá onde era mais estreita, de modo que os carros não poderiam passar sem cortar-lhe o corpo, pelo o menos com uma roda, ou com duas, se o carro tivesse quatro”. Ora, Flávio de Carvalho, como todo seu estoque de irreverência, não pode – “não pode!” – querer produzir-lhe apenas louça e cerâmica “made in Brasil” e bibelôs em série, quando tem uma série de livros para acabar e a palheta limpa e os pincéis secos…

– Rua Aurora, esquina do Arouche, terceiro, Rachel que Queiroz me declarou, peremptoriamente, que se tornara apenas e simplesmente mercenária, e que só escrevia para ganhar dinheiro, e que não seria capaz de fazer uma linha, desinteressada do mercado consumidor e do comerciante de revistas e livros. Falou-me também na “insônia da guerra”, que ainda nela permanece … Coragem, Rachel.

– Sérgio Milliet, pelo menos, está lendo. Aparece um livro e Sérgio sai do outro lado com a crítica. Foi o primeiro dos nossos críticos que pôs em foco o sucesso esplêndido do livro de Koestler, “Le zero et l’infinit”, ainda esta semana. Sexta-feira lá estava ele, transmitindo a um auditório a iniciativa do Sr. Nelson Rockefeller, presidente do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, que desejava um núcleo aqui, de referido organismo, para fazer transitar pela nossa cidade as exposições ambulantes do Museu. “Muito bem tudo isso, seu Sérgio, mas deixa de complacências. Vamos dizer, no duro, mesmo ali “na batata”, qual é o lugar desta nossa literatura no mundo”. Porque ser exigente com a literatura estrangeira e glorificar esta coisa informe e péssima que anda por aí?

– Agora tenho que pensar: realmente, nos anos do Estado Novo, era comum a justificativa: “Não posso escrever sem liberdade”. Hoje o “slogan” é outro: preciso ganhar para viver”. Mas, na realidade, só excepcionalmente vive um escritor aqui, de literatura. Uns tem negócios, outros um emprego.

– E nesta Paulicéia, que deixou de ser desvairada – “ … olhai, oh, meus olhos saudosos dos ontens, esse espetáculo encantado da avenida:” – só diante das vitrinas das livrarias, mercados consumidores da Suíça e do Canadá, ainda. Mas há livreiros que foram a Paris e prometem um dezembro de presentes. Muito obrigado.

– Na entradinha acanhada da biblioteca, se expõe – Paris expõe, acintosamente, ao público, a leitores, a curiosos – também aos intelectuais, por que não? – o que está sendo publicado em revistas e jornais. Uma aragem fresca de civilização neste fim de bruta primavera. Voltei ali nos intervalos da cidade, que puxa a gente para as ocupações, e em horas diferentes verifiquei numerosas vezes o mesmo fato: as revistas de arte, de poesia, de literatura, ficam dormindo nas estantes. Modistas e elegantes cheiram os figurinos e uns característicos personagens, camaradas de bigodes, folheiam a coleção de “L’Humanité”. Incrível.

– O que é incrível é que o movimento modernista tenha procriado uma raça de gente tão diversa. Editoras congestionam as tipografias. Livraria que é mato. Disputam-se até livros caros. E a terminologia é infernal, tão notável é um Kafka quanto um “rebento” que pode pagar um editor para se colocar na lista de “editado”… Ainda bem que o encontro, Oswald de Andrade, madrugando à porta do livreiro da rua Marconi, primeiro na “fila”, para comprar os “NRF” acabados de chegar. Ainda bem que continua nem que seja como historiador, procurando ressuscitar a antropofagia, revisá-la, transformá-la – ou então inventar qualquer outra coisa.