Literatura Oportunista
14 de setembro de 1945
Jovens escritores transviados pela linha justa propuseram-me, como a mais recente comentadora das letras, uma questão que me apresso em responder, nestas considerações literárias, na impossibilidade de lhes proporcionar uma sabatina. . . Querem eles saber de mim, pois não acharam suficientemente claro o que venho explicando, qual a orientação que as letras vão ter neste após-guerra que não há meio de começar, ou como formularia Paul Valéry, qual “le destim prochaim des lettres”, tema que forneceu um “entretiem” inteiro aos membros do Instituto Intervacional de Cooperação Intelectual, nesse longínquo ano de 1937. O mundo, pensam eles, está se libertando para as esquerdas, e eu diria “esquerdamente”.
Como serão encarados os problemas da criação literária nesse mundo em que não acaba mais de morrer japoneses vitimados pela lembrança da bomba atômica? É o que me perguntam, naturalmente sem as galas de estilo que aqui vão e que revelam talvez, um certo esmero na forma, coisa que deva escapar ao futuro escritor do Partido, aos literatos das “massas”.
Efetivamente, o tema é sedutor, pois envolve a funcionalidade da literatura proletária ou “social” (havendo grandes debates sobre a sua denominação) o conteúdo do objeto, e toda a logomaquia que os pedagogos ditos “proletarizantes” gastam no seu apostolado. Ora, ensinava o velho marxismo que a superestrutura e que a literatura constitui está condicionada, em suas raízes mais profundas, à estrutura econômica, condicionante que é de todos os fenômenos sociais. Qual a estrutura que perseguem os stalinistas, os prestistas et caterva? Qual a que, em sua cabecinha de doidivanas, está sonhando o melancólico Partido? O Partido sonha e morre de amores por uma estrutura econômica ordenada num capitalismo “bonzinho”, progressista, camarada, “não-reacionário”. O Partido vai embalado, numa corrida sem freios, para um colaboracionismo de classes que extinguiu completamente qualquer possibilidade de demonstrar a exploração do homem pelo homem, única saída para um literato “proletário” manifestar a sua febril devoção à causa operária.
Nessas condições, e estou apenas seguindo o que a linha justa procura defender, a transformação da política do Partido — conciliação de classes, burguesia progressista, etc., negará a que se chamava antes literatura “social”, proletária, etc. Dentro do campo de concentração a que se recolheram os escritores do Partido, é fácil assinalar para onde vão os rumos da nova literatura, se a doença continuar progredindo… Nessa nova literatura, far-se-á, forçosamente, conciliação de classes. Desenhar-se-á, portanto, o patrão-burguês de grande compreensão progressista, “liga” do operário em vez de arrancar de seu lombo a mais-valia, levando o proletário aos seus “week-ends” em Petrópolis e até mesmo em Quitandinha, onde, numa tarde fortuita, o feliz elemento construtor do progresso poderá até namorar a filha do referido burguês, acabando o romance na igreja de Caxias que o Partido vai construir e que até lá já estará funcionando… Esse, um dos temas. Outro tema, mais alto, político por certo, não é original, porquanto já foi tratado pelo major Amilcar Dutra de Menezes, ex-diretor do ex-DIP: é o que nos romanceará a vida de um ditador bonzinho, influindo beneficamente na felicidade, em O futuro nos pertence, novela mal compreendida por que muito se antecipou à época cinzenta que estamos atravessando agora, e em que possivelmente seria criado um prêmio para uma obra do gênero. Possivelmente, o modelo mais remoto dessa literatura, e que irá fatalmente ressurgir dos mortos, está na história maravilhosa da Gata Borralheira, quando uma fada progressista intervém e faz da pobre menina abandonada a dona do pé em que o sapatinho de ouro servia como se fora uma luva sob medida… É essa literatura que predominará, transformando pastoras em princesas, garotas das lojas Brasileiras em noivas do “haute gomme”, com revistas elegantes ou galantes da cidade. Os jovens operários também pompearão nas páginas apoteóticas da era da burguesia progressista, nadando tudo na inefável felicidade da cooperação de classes. Será uma beleza…
Outro gênero que talvez abafe a imaginação dos autores dos contos de fadas progressistas será o da biografia romanceada dos líderes do proletariado, dos condutores das massas, como aliás já está acontecendo, pois foi consultado a Luiz Carlos Prestes se ele consentia em ser novamente biografado, embora, para muitos, a novela de Jorge Amado encha as medidas. Prestes se dignou em consentir que sim, pois que mal faz uma nova biografia? É possível esta seja a indicação do futuro, e que o jovem camarada que está na trilha do autor das “Terras do sem fim” tenha afinal acertado o passo na previsão da nova pepineira. Biografias e mais biografias, endeusadoras todas, naturalmente, lá podia ser doutro jeito?
Outro gênero ainda será o de coisas adotadas dos romances russos, pois já se vive, neste Rio de Janeiro, de lições de russo desde 60 cruzeiros ao mês.
A derradeira calamidade está numa velha notícia de um jornal que o tempo amarelou, e será o enquadramento dos escritores num sindicato único com os juramentos rituais de fidelidade à cooperação de classes e à simpatia para com o capitalismo não reacionário. E estará então tudo feito.
É verdade que estas coisas não acontecerão aos escritores do Partido, que são medalhões acabados, os prêmios Nobeis da literatura indígena, os que já construíram a sua obra, que a linha justa, segundo penso, não deverá alterar. Aliás, sinto que estou sendo imprudente, porque pode muito bem haver nas reedições, como aconteceu na edição brasileira da vida de Prestes, modificações para dar aos romances e novelas de outros tempos, o “tônus” da idade da desfaçatez e da pouca vergonha que se anuncia, através de todos desfiles, de todas as manobras, de toda essa enfiada de “táticas” sem decência alguma, sem linha alguma, nisso que chamam a linha justa.
Aí está, para os literatos do Partido que querem desfraldar a bandeirola da literatura progressista, um punhado de observações que penso que os ajudarão, úteis como procurei produzi-las, ao encontro das aspirações que eles não sabem que estão alimentando.
É verdade que me esqueci de mencionar o caráter nacionalista daquela literatura nova. Será pontilhada de estrelinhas do me-ufanismo, cantará Volta Redonda e o petróleo de Lobato, assim como os fartos bigodes do generalíssimo. . . o que é afinal uma outra maneira de ser nacionalista e patriota. E os heróis, naturalmente, terão os nomes terminados em off, ou shenko, ou in, ou vitch… Aí estarão as conseqüências finais para a literatura brasileira proletária, da linha justa em que o Partido desliza, com a inconsciência de quem brinca com o fogo, sem saber que o fogo queima. Literatura oportunista, bela introdução à história da inteligência sob o signo do progressismo!