Alencar e o indianismo

Alencar e o indianismo

Jornal A Tribuna, 12 de maio de 1957

Nestas informações para que se venha a ler o que deve ser lido, para uma formação da capacidade de distinguir os bons autores, insistiremos na classificação dos nossos romancistas. Alencar, indianista.

Deve-se conhecer Alencar. Pela primeira vez, com ele, a literatura brasileira “toma jeito” numa linguagem que é uma variante do português. A prosa de Alencar escapa à ênfase, à rigidez sintática, à articulação vocabular do português. Não é ainda a “fala brasileira” que viria fazer João Ribeiro reclamar em 1920 uma nova codificação, e que foi tão procurada por escritores modernos depois desse ano. Mas Alencar já surpreende a crítica portuguesa – é a independência brasileira na prosa que surgia.

No entanto, Alencar adotou conceptivamente para a parte de sua literatura não-urbana, que é aquela em que se distingue, nos romances indianistas “O Guarani”, “Iracema” e “Ubirajara”, uma posição que a crítica moderna acabaria considerando falsa. O índio de Alencar e as situações em que ele o coloca não passam de “idealizações” completamente destituídas de realidade, o que, se é grave para uma literatura de teor urbano, para uma literatura que pretende ter por base a selva e o homem selvagem, se torna ainda mais grave… O tipo do índio de Alencar, como de quase todos quantos se colocaram na sua trilha, é artificioso, e nele não se encontra qualquer ligação com o homem americano, antropológica e etnicamente considerado. Faltava-lhe base científica para essas evocações do período colonial em que conviveram índios e brancos no país.

Então, deve-se ler Alencar, desconectando essas adulterações de uma realidade que ele imaginou, seguindo a trilha do [] romantismo, o romantismo à Chateubriand, em que o reduto do “índio inventado” é colocado como tipo de heroicidade e de vida aventureira e grandiloquente, em contraste com os defeitos do homem branco civilizado.

Deve-se ler Alencar pensando criticamente, nos excessos de uma literatura que pretendeu um campo ignorado, e substituiu, pela imaginação, a vida que procurou transpôr para as suas páginas.

Mas, deve-se ler essa literatura artificiosa, também, apreciando as invocações poéticas que ela realiza, ao tentar cobrir a sua falta de domínio da realidade com descrições brilhantes, imaginosas, bem trabalhadas, embora sempre fantasiosas. A imaginação do romancista cearense infunde a tais páginas poéticas um prestígio legendário… mas desligado de qualquer realidade. Não é o índio que ele coloca na selva, mas “um índio”, “numa selva”, ambos fatores de sua exclusiva invenção.

Há também outra literatura de Alencar, que é a que consta dos seus romances “urbanos”. Não é, porém, a que lhe deu maior renome. De toda a forma, com ele surge a prosa brasileira… Mas a literatura brasileira urbana atinge outra força com Joaquim Manuel de Macedo, e o grande nome que a marca definitivamente é o de Manuel Antônio de Almeida, o autor admirável de “Memórias de um sargento de milícias”, realmente uma revelação para a época, uma antecipação, senão uma superação ao nosso futuro romance naturalista-realista.

Estas distinções precisam ser feitas e consideradas, em relação à lista de onze autores, poetas e prosadores, que aqui recomendamos como base imprescindível a uma orientação de leitura, em literatura brasileira.

Os dados que vamos reunindo poderão ser úteis, se forem sempre acompanhados pela atenção ao quadro geral – a lista de onze livros que aqui publicamos no princípio destas observações. Chegaremos, assim em mais alguns artigos, aos limiares da literatura moderna, à fase contemporânea, em que é preciso, mais do que nunca, distinguir o que presta e o que não serve para nada ao grão e a palha.

MARA LOBO