Um romance brasileiro básico, “Memórias de um sargento de milícias”
Jornal A Tribuna, 19 de maio de 1957
Básico para a literatura brasileira, básico para quem busque uma informação de leitura, e ainda básico para a história da nossa ficção, em seus incertos começos.
“Memórias de um sargento de milícias” surgiram em folhetins semanais do “Correio Mercantil”, em 1853, onde seu autor Manuel Antônio de Almeida era redator. Talento superlativamente precoce, Manuel Antônio teve uma vida difícil de estudo e trabalho, intensamente vivida, a qual se extinguira no naufrágio de 28 de novembro de 1861. Contava então ele apenas 31 anos. Sua biografia tão curta é intensa. Terminando o curso de humanidades que fez foi interrompido várias vezes, Manuel Antônio de Almeida quis dedicar-se ao desenho, mas acabou entrando no jornalismo, no “Correio Mercantil” onde era redator. Iniciou estudos de medicina, trabalhando no jornal para estudar, com traduções do francês. Publicou em revistas algumas produções poéticas. Formado, não conseguiu clínica, e teve de continuar no jornalismo. Nomeado para a então Secretaria de Negócios da Fazenda, deram-lhe a tarefa de escrever uma história financeira sobre o Brasil, que não foi iniciada. O escritor passa então a administrar a Tipografia Nacional, cargo em que conheceu e protegeu Machado de Assis, então no começo de sua vida. Na sua inquieta carreira Manuel Antônio chega a diretor da Academia Imperial de Música e Ópera Nacional. Ao morrer no naufrágio do vapor “Hermes” ia em missão jornalística fazer a reportagem da inauguração do canal de Campos a Macaé. José Veríssimo assinalou com esta frase esse golpe nas letras brasileiras: “Com ele naufragou a talvez promissora esperança do romance brasileiro”. Mencionou o seu pressentimento de que morreria nessa viagem: encontrara na rua pouco antes do embarque um padre…
O livro admirável que Manuel Antônio de Almeida escreveu se torna historicamente o primeiro romance de costumes que tivemos, feito com maestria de inventariante de um momento da vida brasileira, no Rio de Janeiro.
Aliás, mesmo através de sua sobrevivência no meio século que se seguiu ao seu aparecimento, observa-se que o livro não cessou de interessar: surgiu a primeira edição de 1854. O autor não a assinou sequer, como se pode ler no clichê em que reproduzimos a capa desta edição. Tratava-se de “um brasileiro”, designação muito à propósito, pois que envolvia o livro tantos portugueses que era necessário distinguir. Seguiu-se a segunda edição logo depois da morte de Manuel Antônio de Almeida, em 1862. A sobrevivência do livro é mantida mediante quatro novas edições, tiradas entre 1876 e 1900. entre nós, a livraria Martins tirou há uns vinte anos a edição melhor tratada, com um prefácio de Mário de Andrade, em que o escritor realizou uma pequena obra prima de análise literária.
“Memórias de um sargento de milícias” acrescenta a sua importância enorme as qualidades de um romancista que é, sobretudo, um visual. Ele descreve os costumes, levanta as cenas de rua e lhes dá uma vida como nunca ocorreu antes, em qualquer obra literária no país. Ainda mais: arma uma série de intrigas, com uma movimentação digna de “Commedia dell’arte”. E tudo é vivo e brilhante, tudo é transferido à imaginação do leitor com uma riqueza de pormenores, da indumentária às figuras, gestos e palavras.
Na sua fragrância, esse romance inauguraria uma crônica romanceada, que as traduções dos romances franceses, de capa e espada, por Manuel Antônio, certamente favoreceram, na sua concepção e desenvolvimento.
Rompendo o caminho que a sua autoridade de médico lhe ensejava, o escritor lançou em sua obra, talvez comparativamente a qualquer dos romancistas que se lhe seguiram, uma descrição de parto que é uma obra prima de observação, descrição e documentação dos recursos das parteiras supersticiosas da época. Colhe-se enfim, através de uma sequência de quadros do Rio de Janeiro do princípio do século passado, uma idéia nítida dos hábitos e da livre alegria de um povo. Percebe-se que o carnaval nasceu das festas religiosas…
Eis um romance básico da literatura brasileira.
MARA LOBO