Manter o hábito da leitura
Jornal A Tribuna, 21 de abril de 1957
As observações aqui feitas, no sentido de se manter o hábito da leitura, a serviço da boa literatura, concluíram por uma lista de livros. É uma pequena lista de livros, como vimos, incluindo Casemiro de Abreu, Manuel Antônio de Almeida (nome que saiu truncado por um lapso), Machado de Assis, Alencar, Raul Pompéia, Cruz e Souza, Graça Aranha, Lima Barreto, Vicente de Carvalho e Monteiro Lobato. Essa lista, pela necessidade de redução de um método, não podia vir para cá de 1917, ano em que as águas começaram a separar-se. Em nosso primeiro comentário, como devem lembrar-se os leitores, comemoramos o 40º aniversário dos primeiros poemas de Mário de Andrade, nome moderno por excelência. Até então, os nomes constantes de nossa lista representam uma espécie de antologia, no tempo, em referência a cada um dos períodos a que serviram aqueles autores.
É claro que a poesia leva vantagem sobre a prosa, no que se refere ao conhecimento a cada um dos nomes citados. Quem leia “As Primaveras” de Casemiro de Abreu, ou o volume único de suas poesias completas tem uma idéia integral do poeta, em
toda a sua curta vida e produção. Quem leia os “poemas e canções” de Vicente de Carvalho, terá, igualmente, uma idéia bastante “inteira” da poesia do cantor santista por excelência, e ainda mais de toda a poesia parnasiana que lhe é imediatamente contemporânea, e ainda mais “acima” das formas em que se estratificou essa poesia. A última fase de Bilac, terminada em 1918, não é mais importante para a poesia parnasiana e imediatamente “post-parnasiana” do que a de Vicente de Carvalho.
Isto porque uma coletânea de poesias naquele tempo representava quase sempre a soma de alguns anos de trabalho. Depois porque a poesia não se restringe, naqueles livros, a uma fase de sua vida: são somas bem definidas, e “As primaveras”, como “Poemas e Canções” são indispensáveis para o conhecimento total de uma fase de nossa poesia. Com os escritores em prosa as coisas mudam.
Manuel de Antônio de Almeida, o malogrado autor de “Memórias de um sargento de milícias”, é escritor que abre uma clareira em nossa prosa. Ela se despe dos ornamentos supérfluos, adquire uma objetividade. Escrevendo sobre os reflexos diretos do romantismo e da plenitude do indianismo, ele focalizou a nossa realidade urbana, e pôs o homem na sua devida escala. Tanto o romantismo como o indianismo empregaram métodos de redação enfeitados, e pela imaginação deformaram as figuras e as paisagens, idealizaram as coisas, pondo o toque da ação heróica em tudo… A primeira vez que a nossa literatura faz o homem voltar à escala humana é em Manuel Antônio de Almeida. Daí a sua singular importância, embora o conhecimento dos românticos e dos indianistas seja útil para um confronto, e para uma tomada de situação no culto romântico e indianista, que para muitos ainda permanece válido, quando já pertence, hoje, a uma catalogação histórica destituída de valor quanto ao enriquecimento de nossa sensibilidade.
Naturalmente, deve-se ver Manuel Antônio de Almeida “ainda”, à luz do seu tempo – ele é um escritor imprescindível, seu livro o único que publicou.
Com Machado de Assis, porém, o leitor não ficará conhecendo suas possibilidades todas sem ler outros livros além do que mencionamos em nossa lista. “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, entretanto é o primeiro livro realmente “importante” de Machado. A machadiana vai muito longe, desenvolvendo-se, por exemplo, em “Dom Casmurro” ou em “Quincas Borba” (a nosso ver sua obra maior), e em outros, cronologicamente posteriores a “Brás Cubas”.
“Casa de Pensão” de Aluízio Azevedo compõe a fase naturalista – há outras faces importantes mas no mesmo sentido, como “O Mulato” na obra de Aluízio. Mas o que citamos já é suficientemente expressivo de sua obra. Já com o “O Ateneu” chegamos a um ponto alto e solitário na ficção brasileira. É um dos livros permanentes de toda a nossa literatura esse admirável romance de memórias do colégio. Ele avançou o sinal para a ficção modernista: invade o domínio da memorização, faz entrever a psicanálise. Sua forma é voluntuosamente artística. Livro a ser lido e retido com muita atenção.
No “Canaan” de Graça Aranha, que se passa no Espírito Santo, invade nossa ficção um sopro panteísta , de volta à natureza e de integração cósmica, e que ficou também como exemplo único na literatura brasileira. Muito bem escrito, traz o problema do imigrante na terra, e coloca outros, de angústia e conflito de vária natureza.
“Recordações do escrivão Isaías Caminha” é básico para a literatura de Lima Barreto. É um romance bem do século XX. O homem moderno, dividido, surge em linhas. E Lima Barreto acresce aos problemas o seu, de natureza raci
inconformado, ele realiza um dos pontos altos de nossa ficção. Mas não é todo o Lima Barreto que se encontra nesse único romance. É preciso ler mais quatro livros dele, pelo menos, para se ter idéia mais completa do escritor.
Com “Urupês”, de Monteiro Lobato, a ficção brasileira situa-se numa atitude de crítica social ao homem brasileiro – o homem rural e o bacharel. Não é apenas o Jeca Tatú que emerge dessas páginas consagradas pela oratória de Rui Barbosa. É também o falso advogado, o falso bacharel, o tipo da pequena cidade, e o malandro bem conhecido que faz o tipo do vigarista, no “comprador de fazendas”, atual até agora. Daí por diante, passa a literatura brasileira à renovação da poesia e da prosa. Mas é ainda muito cedo. Voltaremos a pormenorizar a importância da lista citada.
MARA LOBO