50 anos da morte de Pagu

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50 anos da morte de Pagu

Por Lúcia Maria Teixeira*

Patrícia Galvão, a Pat, a Pagu, morreu há 50 anos, em Santos, onde deixou marcas inesquecíveis. Nascida em São João da Boa Vista, Santos sempre foi uma espécie de norte, tanto para sua vida como para seu trabalho e obra.

É para cá que vem, de São Paulo, aos dezenove anos, em lua de mel com o pintor Waldemar Belisário e, na estrada, no alto da serra, troca de carro e de noivo. O apaixonado Oswald de Andrade assume o papel, vivendo dias românticos com Pagu em uma pensão no bairro do Gonzaga.

O casamento com Waldemar é na verdade uma farsa arquitetada para que Pagu fuja de casa e do controle familiar e prevê a separação do casal logo após a cerimônia.

O plano conta com a ajuda de Oswald de Andrade e de sua mulher Tarsila do Amaral, que não imagina o envolvimento amoroso do marido com Pagu.

Desde a adolescência Pagu mantém afinidades com a cidade, onde passa férias em família e realiza travessias do Canal a nado.

Desse mesmo porto de Santos, ela parte para Buenos Aires, três meses após o nascimento de seu filho com Oswald, Rudá de Andrade. Pretendia estar acompanhada do marido e do filho, mas, decepcionada com as aventuras extraconjugais do companheiro, viaja, sozinha, para participar de um congresso de poesia como Embaixatriz da Antropofagia.

Leva uma carta para Luís Carlos Prestes, mas só encontra um amigo dele. É a primeira de suas muitas viagens a países estrangeiros, sempre partindo desse porto. Volta carregada de livros marxistas e propaganda comunista.

Adere de corpo e alma ao Partido Comunista e edita, com Oswald, o jornal O Homem do Povo. Perseguida pela polícia e doente, pede a Oswald para vir a Santos, a fim de que ela e o filho recuperem a saúde. Em um quarto alugado no bairro do Boqueirão, passa com o filho alguns dos momentos mais felizes da vida. Depois disso, na vida tumultuada que viveu, pouco pôde conviver com Rudá, do qual ficaria separada por muitos anos, com grande sofrimento para ambos. Rudá morou desde pequeno com o pai e suas várias esposas, sendo criado também por Nonê, primeiro filho de Oswald.

Em Santos, Pagu participa de reuniões do Sindicato da União dos Trabalhadores da Construção Civil e da organização do Socorro Vermelho, ramo partidário de apoio a grevistas e militantes.

É presa no movimento ilegal dos trabalhadores e reconduzida a São Paulo, mas para cá volta, enviada pelo Partido. Mora no bairro da Ponta da Praia, em um quarto alugado do chalezinho de dona Maria, na avenida Rei Alberto I, 367. Esta e sua família se tornaram personagens do livro A Escada Vermelha, de Oswald de Andrade, e de crônicas de Pagu no Jornal A Tribuna. Dona Maria também acolhe o casal em outra oportunidade, no refúgio na Ilha das Palmas, colada à Ilha de Santo Amaro (Guarujá), mas igualmente em Santos.

Dona Maria não sabia das atividades políticas de Pagu, quando lhe alugou um quarto.

Foi uma surpresa descobrir que aquela moça de vinte e dois anos, bonita, meiga, de cabelos encaracolados, que brincava e nadava com as crianças, anda com uma arma na bolsa.

Quem acha o revólver é Oswaldo, sobrinho de dona Maria. Pagu parecia estar fugindo e pediu ao menino que escondesse sua bolsa. É muito pesada, a criança quer ver o que tem dentro. Leva um baita susto. Outro susto toma dona Maria, quando abre o quarto de Pagu, após a moça ter desaparecido alguns dias. O cômodo está cheio de panfletos vermelhos, que a senhora trata de esconder no forro da casa. Quando a polícia vai revistar o local, em busca de provas contra a militante, lá nada encontra.

Foi o que me contou Luiz Alonso Ferreira, neto de dona Maria.

O Brasil começou nesta região, assim como as lutas abolicionistas e republicanas. Santos é conhecida também como Barcelona brasileira e por tantos outros títulos originados do passado de lutas sociais, travadas em históricos lugares 132. Cidade onde Pagu viveu, amou, sonhou, trabalhou, militou política e culturalmente.

Assim como o poeta Ribeiro Couto, que nasceu junto ao porto e se referia ao inesquecível e embriagante aroma de café dessa cidade marítima, Pagu amava o cheiro dessa terra cálida, úmida e quente, com seu típico vento noroeste e seu cheiro de maresia, misturado com café, azeite, peixes fritos, que exalava quando caminhava pela Rua Xavier da Silveira e por outras da “Boca” de Santos.

Lá participa de reuniões comunistas — inspirada principalmente pelo estivador negro Herculano de Souza, com quem divide moradia, na rua Teixeira de Freitas, 66, e a quem atribui sua conversão ideológica — e é a primeira mulher presa na luta política e revolucionária, na Praça da República. Fica detida na “pior cadeia do continente”, hoje denominada Cadeia Velha, na Praça dos Andradas. Essa é a primeira das vinte e três prisões de Pagu por motivos políticos.

Santos guarda similaridades com Barcelona e Buenos Aires: libertárias, portuárias e berços de grandes clubes de futebol — Santos Futebol Clube, Barcelona e Boca Junior.

O antigo espaço boêmio das boates e casas noturnas do centro da cidade, na zona portuária santista, era conhecido por “Boca”, nome inspirado em La Boca, um dos bairros mais pobres de Buenos Aires, mas de igual vocação boêmia.

Desde o começo do século 20, Santos se inseria entre os maiores centros de mobilização operária, equiparando-se a Rio de Janeiro e São Paulo. Na época, as condições insalubres do porto e a jornada excessiva de trabalho a tornavam local ideal para lutas por melhores condições de vida.

Todas as obras na cidade exigiam trabalhadores então inexistentes, especialmente no porto, na construção civil e nos transportes.

O café impulsionava as transformações e as melhorias do porto-cidade. É preciso lembrar que, já em 1878, Santos foi escolhida para sediar a primeira reunião para criação do Dia do Trabalho — o 1º de Maio.

Mais tarde, a cidade foi também o primeiro núcleo do Socialismo no Brasil, onde se instituiu o seu Centro Internacional por iniciativa do médico e sociólogo Silvério Fontes, pai do médico e poeta Martins Fontes.

Imigrantes estrangeiros (na década de 30 eles representavam 27% da população) e migrantes
do Nordeste deram início a uma nova classe em Santos, a operária.

Parque Industrial, o primeiro romance proletário, social e político brasileiro, escrito por Pagu
em 1931 e publicado em 1933, focaliza o bairro do Brás, onde morou, em São Paulo. Mas tem a influência do que viveu também em Santos.

O capítulo O Comício do Bairro da Concórdia é baseado no ato de protesto contra o julgamento de Sacco-Vanzetti, do qual participou na Praça da República santista e que resultou em sua prisão. Patrícia está no palanque, quando a polícia invade a praça e atira, atingindo o estivador negro Herculano, que morre em seus braços. Esse episódio a marcaria para sempre. Além disso, o primeiro romance de Patrícia tem seu título inspirado no lema dos bondes da Light de São Paulo. Em Santos, o imaginário do bonde é muito forte, como representativo de toda uma época. Meio de transporte predominante na cidade até a década de 50, é o seu atual símbolo.

É ainda em Santos, em uma mesa de café da Rua Evaristo da Veiga, esquina da Rua Senador Dantas, que escreve a abertura de seu segundo romance, A Famosa Revista, produzido em conjunto com Geraldo Ferraz.

Ao contrário do primeiro, uma apologia ao partido, o segundo livro é uma crítica ao PCB e a seus métodos totalitários, que pôde sentir na pele.

Pagu foi jornalista, traduziu e falou sobre autores desconhecidos no Brasil e até no restante do mundo, em suas colunas de arte, literatura, teatro. Romancista, desenhista, modernista, em sua fase mais revolucionária, militante comunista e depois anticomunista, pintou e bordou, fez gato e sapato, escandalizou meio mundo. Seguindo ordens do partido, se “proletariza”, é lanterninha de cinema no Rio, metalúrgica, empregada doméstica, passa fome, vive em condições miseráveis, tem a saúde abalada.

Perseguida e procurada pela polícia brasileira, dá a volta ao mundo. Sozinha, com vinte e três anos, faz a “viagem redonda” à Ásia e à Europa, movida pelo ideal e entusiasmo em conhecer a Rússia, onde tem a primeira decepção com o regime. Milita no PC francês, convive com André Breton e os surrealistas, em Paris; traz da China as primeiras sementes de soja plantadas no Brasil.

No Brasil, após o fracasso da Intentona Comunista, é presa, durante quatro anos e meio. Ao ser libertada da prisão, muito debilitada, passa a viver com Geraldo Ferraz. A segunda lua de mel, assim como a primeira, tem Santos como cenário. Mora, inicialmente, ao pé do Monte Serrat, num apartamento de sobreloja.

Dedica-se ao jornalismo da melhor qualidade. Mas não é mais Pagu, nome que passa a abominar. Candidata-se à deputada pelo Partido Socialista Brasileiro, mas não é eleita. Sua militância, a partir daí, é na área cultural, em São Paulo, Rio de Janeiro e Santos. Uma resistência por meio da manifestação estética e do poder transformador da arte.

Quando volta à cidade, em 1954, até o fim da vida, em 1962, trabalha em A Tribuna, e ajuda a criar a Associação dos Jornalistas Profissionais de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão. Em Santos frequenta o Clube de Arte, fundado pelo gravurista Mario Gruber e do qual participam vários intelectuais, a maioria de esquerda. Daí se origina parte do movimento do teatro amador santista.

Participa da Comissão Municipal de Cultura, junto com outros integrantes do mundo das artes, como Roldão Mendes Rosa, Narciso de Andrade, Evêncio da Quinta, nomeados pelo prefeito José Gomes. Este tem como chefe de gabinete o jornalista Juarez Bahia, que depois seria redator-chefe de A Tribuna e faria carreira no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro. Com o apoio do Departamento Cultural de A Tribuna e de Paschoal Carlos Magno, Patrícia organiza memoráveis Festivais de Teatro Amador, que revelam grandes talentos.

Incentiva a formação de grupos amadores e de teatro de vanguarda, com autores como Ionesco e Arrabal (em estreia mundial).

Peças do ator e dramaturgo Plínio Marcos, então estreante, são apresentadas com músicas compostas por Gilberto Mendes. Gilberto, responsável pelo histórico Manifesto Música Nova, logo depois transfere esse movimento para Santos, criando o Festival Música Nova, que dá à cidade repercussão internacional.

O ponto de encontro, anárquico-cultural, na época, de jornalistas, atores, escritores, músicos, universitários e boêmios era no bairro do Gonzaga, no extinto Bar Regina, na Avenida Ana Costa, esquina da Praça Independência, no bar do cine Atlântico e no ex-restaurante São Paulo. Entre um gole e outro, discussões sobre teatro e cultura aconteciam. Patrícia chegava por volta das nove da noite e só saía quando Geraldo fechava o jornal e passava para buscá-la, no início da madrugada.

Quando comecei a pesquisa, há muitos anos, em 1987, enquanto lia um trecho de um artigo escrito por Pagu, “de algures alguém telegrafa para o mundo pedindo atenção” 133, inexplicavelmente as teclas de meu telefone começaram, sozinhas, a emitir som, por breves segundos.

Coincidência? Talvez…

Ao lado de muitos 134, me juntei ao trabalho de devolver, aos admiradores de Patrícia, um pouco das inúmeras facetas dessa mulher que, em seus 52 anos foi, como esta cidade, uma força de resistência, com sua indomável teimosia, lutando, sem se curvar.

Respondendo a seu pedido telegráfico de atenção, muitos arquivos foram reunidos, criados e continuam sendo digitalizados, testemunhas vivas de sua memória e estão no Centro de Estudos Pagu Unisanta, um canal para comunicação. Além disso, deram origem, a partir de 1988, a livros 135, artigos, documentários, exposições, debates, mostras de teatro, realizações culturais.

Ela perguntou, no fim da vida, antes da segunda tentativa de suicídio, num momento em que considerou mortas todas as esperanças:

“(…) Sabem vocês o que é ser um canal?
Apenas um canal?
Gosto de bandeiras alastradas ao vento
Bandeiras de navio
As ruas são as mesmas.
O asfalto com os mesmos buracos,
Os inferninhos acesos,
O que está acontecendo?
É verdade que está ventando noroeste,
Há garotos nos bares
Há, não sei mais o que há.
Digamos que seja a lua nova
Que seja esta plantinha voacejando na minha frente.
Lembranças dos meus amigos que morreram
Lembranças de todas as coisas ocorridas
Há coisas no ar…
Digamos que seja a lua nova
Iluminando o canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal.”

Patrícia morreu e foi velada na casa onde morava em Santos, na Avenida Washington Luiz, no canal 3. Repousa no cemitério do Saboó, nesta cidade que tanto amou.

Como cada um dos canais de Santos, veias abertas na cidade onde corre o mar, Pagu é travessia para diferentes pontos, para que não fiquemos parados à margem de nós mesmos. Daqui ela zarpou muitas vezes, mas sempre voltou. Sua natureza não admitia a acomodação de ficar restrita a um lugar totalmente. Andou por muitos lugares, terras e mares deste mundo tão grande. Mundo que, no dizer de Drummond, cabe nesta janela sobre o mar, da qual jamais partiu.

*Lúcia Maria Teixeira é escritora, autora de várias obras sobre Pagu, doutora em Psicologia, Presidente da Universidade Santa Cecília e do Centro Pagu Unisanta. www.pagu.com.br; lucia@unisanta.br

1 Comentário

  1. Ana Deivis - 30/01/2013

    Toda história e o trabalho são simplesmente fascinantes gostaria muito de ter acompanhado no RJ,pois não teria como ir a outro estado.estudante:ANA DEIVIS(serviço social)

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