Pagu e Clarice, duas mulheres especiais
Por Lúcia Teixeira (*)

Dizem que não há coincidências na vida. Eu acredito. Não por acaso, estamos no tempo de relembrar e celebrar duas mulheres modernistas e pós-modernas: Pagu e Clarice Lispector. Neste sábado (12), são 58 anos da morte de Pagu (Patrícia Galvão), jornalista, escritora, militante política, que agitou a vida cultural de Santos e aqui terminou seus dias. Uma rica oportunidade para celebrar também Clarice Lispector, considerada uma das maiores escritoras brasileiras, igualmente jornalista, que completaria 100 anos neste dezembro.
Resgatei o belo texto de Pagu, com o pseudônimo de Mara Lobo, “Laços de Família”, publicado em A Tribuna, em 7 de agosto de 1960, e não divulgado em nenhum outro meio após essa data. Trata-se de crônica sobre o lançamento do clássico “Laços de Família”, de Clarice.
Talento, ousadia, enigma, questionamentos, quebra de preconceitos e tabus sociais, características da vida e a da obra das mil e uma personas de Clarice e Pagu, tornam essas intelectuais cada vez mais presentes na atualidade. As duas morreram cedo. Clarice, aos 56 anos, com câncer no ovário; Pagu, aos 52, no pulmão.
Corajosas e desbravadoras, expondo as feridas da alma, devastaram para o mundo suas entranhas sem pudor ou distanciamento. Expuseram também o lado esquecido da nação e da existência das pessoas mais pobres e vulneráveis. Como a de Macabéa, em A Hora da Estrela, de Clarice; e as trabalhadoras do Brás, em Parque Industrial, de Pagu com o pseudônimo de Mara Lobo. Vida e literatura que dialogam com o momento pandêmico atual, em que tantos continuam sem direito à saúde, saneamento, comida, moradia.
Clarice escreveu: “O amor é vermelho. O ciúme é verde. Meus olhos são verdes”. E os olhos de Pagu também receberam poema de Raul Bopp: “Pagu tem olhos moles/ Olhos de não sei o quê. Se a gente está perto deles/A alma começa a doer”.
Mais do que a cor dos olhos, a vastidão dos seus olhares intimistas, contundentes e antecipatórios aproximam Pagu e Clarice, embora tivessem personalidades distintas. A crônica ”Laços de Família”, escrita por Pagu a respeito do livro homônimo, é, na realidade uma crítica literária inédita, atual, visionária, perspicaz, irônica, sagaz, política, recheada de muita informação histórica, para deleite de professores, historiadores, críticos, estudantes, literatos, filósofos e do público em geral.
Para os dias de hoje, uma crônica de Pagu sobre o livro “Laços de Família”, obra de Clarice Lispector, é um tesouro. Relembrar é uma forma de homenagear essas suas importantes mulheres por intermédio de sua própria e rica produção. Reencontrar essa crônica, um dos muitos documentos que fazem parte do acervo do Centro Pagu Unisanta, reunidos em minha pesquisa de tantos anos, me trouxe muita emoção.
Emoção por vislumbrar, nesse encontro das duas escritoras, todo o respeito e humildade de Pagu ao reconhecer a originalidade da linguagem de Clarice, que continua mais atual do que nunca em nossos dias.
Pagu destaca o estilo marcante de Clarice e afirma que ela é a maior ficcionista do Brasil, uma contista de nosso tempo. Ela, plural em seu perceber, antecipou o futuro. Clarice por certo responderia que “escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada”.
Reunir as duas para uma conversa sobre a maravilha e o horror da existência traz material para uma leitura apaixonada e verdadeira do nosso tempo, com todas as nuances psicológicas que a literatura permite. Como diz Pagu em sua crônica, “o livro de Clarice é uma lição límpida, comovida, inteligente, de como se pode amar a literatura”.
Que essa lição continue eterna, da mesma forma que essas duas mulheres permanecem desvendando caminhos de liberdade.
(*) Lúcia Teixeira é escritora, psicóloga, educadora, biógrafa de Pagu, indicada ao Prêmio Jabuti, e também Presidente da Universidade Santa Cecília.
“Laços de Família”, 07 de agosto de 1960, A Tribuna

Amigos, hoje, nesta crônica, vou lhes abrir o meu coração… Assisti na última semana de julho, na velha Livraria Francisco Alves, a um acontecimento que talvez seja o maior acontecimento literário do ano para nós, neste triste país. Naqueles dias, escritores andavam se reunindo num Congresso do Pen Clube; houve uma promoção de feira-livre com estrelas de futebol, rádio e gude, para ajudar a colocar livros, a que chamaram Festival do Escritor, e até o governo fez um decreto do Dia do Escritor, 25 de julho… Pois naquela tarde, Clarice Lispector fazia entrega de livros autografados no balcão da livraria Francisco Alves. Tive a felicidade de testemunhar este acontecimento.
“Agora tu, Calíope, me ensina…” , dizia o velho Camões em seu apelo à eloqüência, e quase estou precisando disso. Mas, é melhor que lhes abra meu coração: aquela senhora que veio para o balcão da livraria é hoje o maior ficcionista brasileiro. E faz oito anos que saiu pelas mãos de Simão Leal, nos Cadernos de Cultura do Ministério da Educação, seu livrinho magro “Alguns contos”, em que seis historiazinhas nos davam notícia da capacidade de Clarice em trabalhar pequenos textos, com a mesma perfeição com que construíra seus romances “Perto do coração selvagem”, “O lustre”, “A cidade sitiada”, três livros bastante antecipados da capacidade de apresentação do leitor brasileiro. Pois tanto tempo fora do Brasil, tanto tempo fora das vitrinas das livrarias, a volta de Clarice para o Rio em agosto do ano passado, lhe deu oportunidade de reinstalar sua tenda e continuar produzindo. E aqui estão os contos.
Depois de alguns contos de Machado de Assis, de alguns contos de Lima Barreto, de outros de Antônio de Alcântara Machado e Mário de Andrade – eis que sobreleva à fatura desses trabalhos antológicos em que estou pensando, esta concepção brilhantíssima de tema e de estilo, juntos, inseparavelmente, numa fusão inteligente e máximo de como se expressar de maneira notável uma contista de nosso tempo. Sim, Clarice Lispector chega depois de tudo aquilo “maior” no Brasil – mas chega também em função de sua profunda observação informada de tudo quanto se podia produzir em conto em relação ao “maior” no mundo. Eis Clarice e seus treze contos deste livro “Laços de Família”, para o qual Cyro del Nero desenhou uma coleção primorosa de ilustrações densas, intensas, tensas – uma palavra puxa a outra, deixe que lhes fale com o coração hoje.
Pois é na Coleção Alvorada de que Carlos Lacerda abriu a trilha, segundo por Homero Homem, que Clarice se situa com este “Laços de Família”. A explicação da editora honra a sua nova orientação em valorizar a literatura brasileira de vanguarda, enquanto Paulo Ronai nos fala, nas orelhas do volume, dos méritos e das técnicas empregados pela contista, e o faz com uma eficiência de mestre, acompanhando os mergulhos em profundidade realizados por Clarice Lispector. Ela vai ao fundo das coisas…
Peço-lhes, assim, que leiam este livro de contos. Ele determinará uma etapa na história de nossa ficção. Dir-se-á, um dia; depois que Clarice Lispector publicou seus contos…
Agora, já que há por aí Jogos Florais da Primavera, e que a Comissão Municipal de Cultura fez um regulamento erradíssimo para o julgamento dos contos a entrarem nesse concurso, vou dar aqui minha contribuição a esse esforço desconcertante, para consertar alguma coisa. A Comissão Municipal de Cultura pode dirigir-se à Livraria Francisco Alves e adquirir livros com 30% de desconto, para premiar com eles o comparecimento dos “contistas” que se inscreverem e mandarem contos ao seu concurso nos Jogos Florais, categoria “contos”. Deve-se acreditar que quem concorre a um concurso de contos gosta de contos e até de fazer contos. A Comissão concorrerá, então, para instruir essa turma, premiando “todos os concorrentes” com um exemplar de “Laços de Família” de Clarice Lispector, porque ali há uma arte do conto, levada às suas últimas conseqüências, e assim a Comissão fará alguma coisa pela informação sobre o conto – a que alturas já chegou em qualquer lugar do mundo. Porque o livro de Clarice é uma lição límpida, comovida, inteligente, de como se pode amar a literatura.
MARA LOBO.