“The Tempest”…
31 de agosto de 1942
” … Eu lhes falaria hoje do homem e de sua grande miséria. Mas se o mundo fala, os homens são mudos”… (Ariel).
Uma tradição antiga conta a existência de um mestre que falava e ensinava coisas maravilhosas. Mas ninguém o entendia porque o lendário personagem não falava a língua dos homens. Foi condenado ao ostracismo e, então, nada mais lhe restou que enterrar-se num túmulo de gelo.
A singular figura veio até os meus dias, aparecendo-me em sonhos, numa destas noites. Mas não possuía o grande manto da lenda, nem o fluido imponderável que lhe permitisse as exosmoses poéticas, nem trazia nas asas a incandescência eólia dos enviados.
Seus olhos carregavam a gélida expressão dos anunciadores, mas as asas decadentes eram negras. E freqüentava comigo, no meu pesadelo, um hospital de alienados.
Era apenas um homem doente, numa casa de doidos, coberto pelos trapos de um uniforme que ele mesmo rasgara numa de suas crises. Os médicos, que ele apelidava Calibrans, haviam diagnosticado um curioso caso de psicose maníaco-depressiva, mas o poeta, porque tinha sido poeta, continuava sem melhora, sem falar a linguagem dos homens. No sonho, eu era também um seu discípulo inofensivo. Todos os doentes deixavam suas manias para ouví-lo, e ele dissertava maravilhosamente no seu verbo universal, até que os “inimigos” surgiam com as armas sedativas e as correias do ostracismo.
Quando a noite descia e entrávamos no negro podíamos ainda ouví-lo de sua cela, conversando com as montanhas, enviando-nos a sua mensagem apócrifa das trevas. Era um soluço surdo, triste, e depois a extensa simbologia que alcançava as estrelas da madrugada. Terminava na catalepsia esmagadora do cardiasol, quando a vida reclamava a sua impotência.
Como eu também fosse louco, pedi aos senhores do sanatório, numa temeridade fanática, que permitissem ao poeta falar ao mundo a linguagem da verdade. Mas, precreveram-me também injeções silenciadoras. Ao deixar os limites do consultório, onde se reunia a sabedoria psiquiatra, um velho facultativo, o mais complacente de nossos inimigos, exorcizou-me paternalmente:
“Fale a linguagem dos mudos.”
E ao notar no meu dorso as premissas de anormalidade acrescentou:
“E corte as asas.”