O Jornalismo de Pagu

O Jornalismo de Pagu

A vontade de servidão

7 de setembro de 1945

Com a publicação dos ensaios que escreveu em São Paulo, para onde acaba de voltar, Fidelino de Figueiredo em “Cultura intervalar”, Lisboa, 1944, continua perseguindo a imagem fugitiva dos dias tormentosos de nosso crepúsculo, ao primeiro clarão difuso da “atomic age”, desenhando-lhes a síntese e a análise, com aquele sentido que é quase sensualismo, nele, da frase tersa ocupada na indumentária sóbria das idéias vivas. Aconselharia, talvez por instinto maternal, aos desamparados, aos ceguinhos que encontro tantas vezes pelas nossas ruas, que reparassem nas páginas do ilustre escritor português, porque, estou certa, ali viriam a deparar com algumas indicações úteis e eficientes, capazes de conduzi-los à boa vereda. Não se trata de um livro ideológico, ou de uma rede ética para repouso improvisado. A pequena análise espectral que Fidelino de Figueiredo nos dá nestas páginas constitui, a meu ver, um levantamento generoso das condicionantes agônicas do tempo que ainda não nos deixou e em que aquelas mesmas condicionantes teimam em permanecer, distendendo o que ele chamava de “intermédio entre as duas guerras”, para cá destes primeiros meses, ou dias, talvez horas da paz que voltou aos lares dos homens. A noção de “cultura intervalar”, certamente examinada — é claro que tenho de pedir exame e não aceitação pura e imediata — daria possivelmente crispações de interesse a cada um dos meus pobres ceguinhos. . . Vêde que lhes estou a pedir que adotem uma medicina de fácil acesso. Apenas que tenham a noção da cultura intervalar, e se coloquem dentro dela, no lugar que lhes reserva, em seu registro sismógrafico o professor Fidelinho de Figueiredo.

Fidelino de Figueiredo aponta para a crise de nosso tempo a falta de uma “cultura condutora, essa perda da magia ou feitiço dos ideais guiadores, que faz que os homens amem numa época o que noutra desdenhem”. Observa como naquele intermédio da história humana se pretendeu “sustar a invencível monstruosa da inteligência e da liberdade”.

Pergunto: o fim militar da guerra será suficiente para acabar com o período estudado pelo escritor da “Cultura intervalar”?

Creio que não, porque as suas causas profundas permanecem, enquanto não desponta a madrugada da “atomic age” e os vícios, a maldade e os preconceitos dos homens continuam mantendo as cercas de arame farpado que nos fecharam no período dado. Então, é oportuno e necessário citar mais a formulação analítica do ilustre escritor. Eis como ele nos descreve a essência desta fase histórica:

“Esta psicose moderna da intoxicação fascista”. . . “deitou tantas raízes e teve tantas convicções e dedicações a defendê-la e a construir tão cínica visão do mundo e da vida que não deixou de ter, em certa altura, sua legitimidade. Por isso o totalitarismo só é responsável pelo uso que fez do despotismo interno e pelo desencadeamento da guerra, mas não o foi, nem podia sê-lo pelo seu próprio nascimento e pela sua constituição. Veio ao encontro de uma necessidade mórbida do homem bárbaro: a vontade de servidão. A gênese dessa enfermidade coletiva tem de ser procurada no súbito abaixamento da mentalidade e da ética social do homem multitudinário, na Grande Guerra, a corrupção do homem ignaro, do centauro mecânico, pelas facilidades da técnica — em tudo isso que chamarei a cultura intervalar ou anti-cultura ou seja essa espessa floresta de equívocos, erros e falsificações, de boa fé e má fé, destes decênios negros”.

Ainda: “E toda essa massa de valores enganosos, que encheram a cabeça do homem médio, do “homem da rua”, como preferem dizer os ingleses e os norte-americanos, e que dirijam o seu coração e a sua vontade, que se condensam na corrupção do gosto. . .” . . .”o sinal externo e militante da cultura”. “É a força do gosto que, na política, leva em dado momento os homens a morrer nas barricadas pela liberdade, mais amada que o pão e a vida e a endeusar os paladinos e mártires da dignidade humana; e noutros instantes da história os deixa preferir a escravidão, lamber as próprias algemas, bater-se pelo carrasco e motejar dos campeões da sua liberdade, como de figurinos cediços. Tais contradições provêem dessa coisa misteriosa, que é a evolução do gosto coletivo — a qual teve neste intervalo das duas Grandes Guerras uma fase triste de erro e turvação, com seus solícitos agentes confusionistas”.

Pode-se, é claro, discordar deste ponto ou daquele, mas é muito proveitoso acompanhar o pensamento do escritor de “Cultura intervalar”, em sua notável exposição. E aos meus ceguinhos, estou apostando, faria tanto bem…

A quem me dirijo quanto falo dos meus ceguinhos? São pessoas que andaram na minha estima e na minha admiração e que hoje se me apresentam como transfugas do ideal, da decência, do recato; pessoas que nunca apareciam nos clichês de uma coluna de jornal, e que hoje se engaiolam nas acomodações reacionárias, ajustando suas concepções de arte ao que determinam os Donos da Verdade, embora nós, eu e as vítimas, tenhamos consciência da que esses Donos da Verdade estão muito abaixo moral e intelectualmente do nível daqueles a quem submetem.

São pessoas que não se pejam de se pôr de quatro a “serviço do Partido”, e desfilam constrangidas pela Avenida Rio Branco na cauda de qualquer cortejo, bastando que lhes seja determinado. São infelizmente pessoas que estão ficando sem cara, amanhã estarão irreconhecíveis transformadas nos centauros mecânicos de Fidelino Figueiredo. Afigura-se-me que são suicidas da própria liberdade, enquadrados e em marcha para o maior campo de concentração da história, por todos os países da terra — dispondo-se a tudo, na VONTADE DE SERVIDÃO de que emergiu o totalitarismo, na cultura intervalar… São esses, os meus pobres ceguinhos…